INTRODUÇÃO
Em 1837, enquanto ainda
estudante de direito, Karl Marx começa a circular entre os jovens
hegelianos de Berlim (BECKENKAMP, 2005). Essa aproximação se
mostraria essencial para definir a direção de seu pensamento nos
anos seguintes. De fato, o pensamento do jovem Marx pode ser
compreendido, segundo Beckenkamp (2005, p. 64), como “uma
progressiva superação do idealismo hegeliano e de diversas posições
dos jovens hegelianos, culminando na formulação das concepções
básicas do materialismo histórico.”
No entanto, por superação
não se quer dizer total refutação de um sistema anterior, à
maneira de algumas vertentes do ceticismo, por exemplo. Isso por si
só já seria contrário à própria dialética hegeliana, mantida
por Marx em vários aspectos. O próprio Hegel afirma, em relação a
este tipo de ceticismo, que este não pode avançar e nem mesmo
construir coisa alguma, pois está muito ocupado em destruir o que é
erigido por outros sistemas, sendo que, após destruir tudo, fica
ocioso, esperando até que algo de novo seja construído para ele
novamente destruir:
“O cepticismo que termina com a abstração do nada ou do esvaziamento não pode ir além disso, mas tem de esperar que algo de novo se lhe apresente – e que novo seja esse – para jogá-lo no abismo vazio.” (HEGEL, 2011, p. 76)
Dessa forma, se a obra de Marx
é uma progressiva superação do idealismo hegeliano, e se isso não
quer dizer que tenha descartado por inteiro o sistema que constitui
seu ponto de partida, quais foram os pontos do pensamento de Hegel
que foram continuados através da obra de Marx? É o que tentaremos
apontar de maneira muito resumida nas próximas páginas.
EVOLUÇÃO, RUPTURA OU
AMBOS?
Segundo Poulantzas (1981), o
pensamento de Marx não deve ser considerado como uma mera evolução
do pensamento de Hegel. Antes, por se tratar de uma nova ciência,
ele se constitui, como sistema, numa ruptura efetiva com as
ordenações de noções ideológicas anteriores.
Se é verdade que o marxismo
se forjou historicamente a partir das constelações teóricas que o
precederam, não é menos verdade que, ao construir um objeto novo,
ele muda de terreno, o que implica a descoberta de conceitos
originais. (POULANTZAS, 1981).
A obra do jovem Marx é
fortemente influenciada por Hegel, e é nela que encontramos sua
primeira tentativa sistemática para a superação do sistema
hegeliano: sua dissertação de doutorado Diferença
da filosofia da natureza democrítica e epicureia,
escrita em 1840-1841. Marx toma aqui a tese central de Hegel de que
“estão inteiramente representados nos epicureus, estoicos e
céticos todos os momentos da autoconsciência, só que cada momento
como uma existência particular.” (BECKENKAMP, 2005, p.65).
Segundo Lefebvre (2009), Marx
aprofundou a lógica hegeliana e continuou a elaboração do método
dialético, retomando o esforço empreendido por Hegel na
Fenomenologia
do Espírito
de esboçar uma história geral da Consciência Humana, retendo,
principalmente, sua célebre noção de alienação. No entanto,
deve-se ter presente que essa empresa de Marx não consiste numa mera
retomada das “categorias da dialética hegeliana, extraídas do
idealismo e transplantadas para o materialismo.” (POULANTZAS,
1981, p. 160)
Marx via na dialética de
Hegel “a doutrina do desenvolvimento mais vasta, mais rica de
conteúdo e mais profunda, a maior aquisição da filosofia clássica
alemã.” (LENINE, 1986, p. 9) Um dos elementos desenvolvidos por
Hegel e continuado no pensamento de Marx é a constatação de que a
análise suficientemente aprofundada da realidade atinge elementos
contraditórios. Segundo Lefebvre (2009), a importância da
contradição escapou a Descartes e até a Kant. Somente Hegel a
tinha percebido, tendo Marx aplicado posteriormente a hipótese
hegeliana às condições sociais, econômicas e políticas.
No entanto, apesar da
dialética hegeliana “ter chamado a atenção para a importância
primordial da contradição em todos os planos (da natureza e da
história)” (LEFEBVRE, 2009, p. 33), Hegel acreditou poder definir
abstratamente a contradição em geral. Em seguida, se utilizou dessa
definição lógica (formal) para reconstruir as contradições
reais, os movimentos reais, só que de maneira puramente
especulativa, metafísica, apesar da reconstrução do real
empreendida por Hegel analisar números conhecimentos adquiridos e
outros tantos fatos concretos.
Marx, em sentido inverso,
afirma que “a ideia geral, o método, não dispensa de capturar
cada objeto em sua essência” (LEFEBVRE, 2009, p. 34). Ou seja, o
método é apenas um guia, uma orientação para a razão no processo
de conhecimento de cada realidade. Desta feita, a lógica (formal) se
submete à matéria estudada, ao conteúdo.
Assim, Marx chega à conclusão
de que as ideias que se tem sobre as coisas e o mundo não são mais
do que o mundo material refletido na cabeça das pessoas, ou seja,
são construídas a partir do contato ativo com o mundo exterior por
meio de um processo complexo de que participa toda a cultura. Tais
desenvolvimentos de Marx sobre o método hegeliano deitam a base,
portanto, do materialismo histórico.
Segundo Poulantzas (1981), a
grande ruptura de Marx com a problemática teórica que lhe era
anterior, principalmente na filosofia da história de Hegel, é que
nesta
“os diversos domínios da realidade social, a economia, o Estado, a religião, a arte, etc., as suas relações e os seus princípios de inteligibilidade, fundam-se na sua origem genética, a partir de um sujeito criador da sociedade e princípio unilinear, no seu autodesenvolvimento da História. Trata-se de uma totalidade circular: todas essas totalidades se consideram engendradas por um centro, constituindo assim expressões desse sujeito central. […] Esse sujeito-essência é, para Hegel, o espírito absoluto.”
Aqui então Marx rompe com a
problemática do sujeito e da essência na sua forma especulativa,
sendo para ele qualquer forma de sociedade uma estrutura composta de
certos níveis objetivos (como o econômico, o político, o
ideológico, por exemplo), estrutura no interior da qual o nível
econômico tem sempre um papel preponderante, um papel de
determinação em última instância do todo. (POUlANTZAS, 1981)
No posfácio à segunda edição
de O Capital
Marx afirma
que seu método dialético é, em seus fundamentos, não apenas
diferente do hegeliano, mas exatamente o seu oposto. Para Hegel o
processo de pensamento - o qual ele até transforma em um sujeito
independente sob o nome de “Ideia” - é o criador do mundo real,
e o mundo real é a aparência externa da ideia. No entanto, o que
acontece é o oposto: o ideal não é nada além do mundo refletido
na mente do homem, e traduzido nas formas do pensamento.
Apesar da “mistificação”
que a dialética sofreu nas mãos de Hegel, isso não impediu que ele
fosse, no entanto, a apresentar sua forma geral do movimento de uma
maneira compreensível e consciente. Em Hegel a dialética está de
cabeça para baixo, e é necessário invertê-la para descobrir o
cerne racional que se encontra dentro desta aparência mística
(MARX, 1990).
Para Marx, a grande realização
do idealismo alemão e de sua crítica materialista seria “a
compreensão do homem como autor de suas representações e como ser
genérico a se realizar enquanto gênero humano." (BACKENKAMP,
2005, p. 71-72) Tal realização do homem teria lugar, segundo Marx,
no comunismo, que seria a negação da propriedade privada, a qual,
por sua vez, é a negação da verdadeira essência do homem no seio
do mundo material e sensível (BACKENKAMP, 2005). Ou seja, o
comunismo seria a negação da negação.
Feuerbach havia interpretado
de maneira empobrecedora a dialética hegeliana da negação da
negação, deixando escapar o que ela tinha de mais interessante.
Marx então se propõe a resgatá-la, o que pode ser encontrado nos
Manuscritos
de 1844.
(BACKENKAMP, 2005)
Nos Manuscritos
Marx interpreta a dialética da negação da negação como uma
expressão abstrata e especulativa do movimento da história:
Mas na medida em que Hegel compreendeu a negação da negação, segundo a relação positiva nela presente, como o realmente e único positivo, segundo a relação nela presente, como o único e verdadeiro ato e auto-atuação de todo ser, ele apenas encontrou a expressão abstrata, lógica, especulativa para o movimento da história, a qual ainda não é história real do homem como um sujeito pressuposto, mas apenas ato de criação, história do surgimento do homem. (BECKENKAMP, apud MARX, 2005, p. 80)
Marx efetua então uma síntese
de Hegel e Feuerbach. Hegel, ao pensar o movimento histórico ou a
natureza humana como algo que se faz na história, teria pensado o
que Feuerbach não logrou pensar. Faltava ao materialismo
feuerbachiano a dimensão histórica, a qual é pensada pela
dialética hegeliana, só que de forma idealista. (BECKENKAMP, 2005)
Assim, “mesmo que em Hegel
não seja compreendida a história real do homem, pelo menos
encontra-se nele a perspectiva do pensamento histórico.”
(BECKENKAMP, 2005, p. 80)
Hegel conservador, Marx
revolucionário?
O conjunto da doutrina de
Hegel deu grande margem a que nela se abrigassem as mais diversas
ideias partidárias práticas (ENGELS, 1975), como ficou
historicamente demonstrado pelas alas hegelianas de esquerda e de
direita. Mas era Hegel de fato um conservador? Se sim, como pôde
Marx, a partir do sistema hegeliano, desenvolver um pensamento
revolucionário?
A tese de Hegel de que “tudo
o que é real é racional; e tudo o que é racional é real” teria
sido, segundo Engels (1975, p. 82), interpretada de maneira
equivocada como “a santificação de tudo que existe, a bênção
filosófica dada ao despotismo, ao Estado policial, à justiça de
gabinete” e à censura, inclusive por Frederico Guilherme III e
seus súditos.
Assim, afirma Engels, esta
tese hegeliana, aplicada ao estado prussiano da época, permitia
uma única interpretação: este estado é racional, corresponde à razão, na medida em que é necessário; se, no entanto, nos parece mau, e continua existindo, apesar disso, a má qualidade do governo justifica-se e explica-se pela má qualidade correspondente de seus súditos. Os prussianos da época tinham o governo que mereciam. (ENGELS, 1975. p. 82)
No entanto, pergunta Engels
(1975), não era também real república romana, assim como o império
romano que a substituiu? Não havia se tornado irreal a monarquia
francesa em 1789, isto é, “tão destituída de toda necessidade,
tão irracional, que teve de ser varrida pela grande Revolução”
(ENGELS, 1975, p. 82), da qual Hegel falava sempre com grande
entusiasmo? Aqui, portanto, o irreal era a monarquia e o real, a
revolução.
Desta feita, considerando que
os estados e os sistemas políticos passam de reais a irreais, eles
perderiam assim seu caráter de necessidade, seu direito de existir,
seu caráter racional, tornando a tese de Hegel em seu contrário:
tudo que é real, nos domínios da história humana, converte-se em irracional, com o correr do tempo; já o é, portanto, por seu próprio destino, leva previamente, em si mesmo, o germe do irracional, e tudo que é racional na cabeça do homem está hoje com a aparente realidade existente. (ENGELS, 1975, p. 82)
A tese de Hegel se resolveria,
portanto, segundo as regras de seu próprio método dialético, nesta
outra: “tudo o que existe merece perecer” (ENGELS, 1975, p. 82).
Nisso residiria, segundo
Engels (1975), o caráter revolucionário da filosofia hegeliana,
pois ela acabou com o caráter definitivo de todos os resultados do
pensamento e da ação do homem. Para Hegel, a verdade que a
filosofia procurava conhecer já não era uma coleção de teses
dogmáticas fixas, mas residia no próprio processo do conhecimento,
através do longo desenvolvimento histórico da ciência, da
filosofia, nos demais ramos do conhecimento e no domínio da
atividade prática.
Se é possível, portanto,
reconhecer um aspecto conservador nesta tese de Hegel quando ela
legitima determinadas formas sociais, este conservadorismo é apenas
relativo. Seu caráter revolucionário, pelo contrário, é absoluto
– na verdade, “a única coisa absoluta que ele deixa de pé”
(ENGELS, 1975, p. 83).
A alienação
A teoria filosófica da
alienação, trazida até nós pela metafísica e pela religião, foi
retomada na modernidade por Hegel, mas foi Marx quem lhe atribuiu seu
sentido dialético, racional e positivo (LEFEBVRE, 2009).
Os metafísicos definiam o
humano por um único de seus atributos: o conhecimento ou a razão.
Assim, todos os outros aspectos do homem eram relegados a segundo
plano e considerados desumanos. Para Platão, por exemplo, “a vida,
a natureza e a matéria são 'o
outro'
aspecto da Ideia pura (do Conhecimento), isso é, sua decadência.”
(LEFEBVRE, 2009, p. 39-40)
Na religião tanto o humano
quanto o desumano aparecem como uma alienação da verdade eterna,
como uma queda da condição divina. Tal concepção, no entanto,
foi superada pelo homem moderno, para o qual o humano pode ser
discernido do desumano. Contudo, tal demarcação não consiste prova
de que eles possam ser definidos abstratamente, e menos ainda que se
possa negar o desumano por meio de um ato de pensamento ou de
condenação moral.
A aplicação da dialética à
história humana efetuada por Marx demonstra que o humano precisou
desenvolver-se ao longo da história, e que isso não foi feito de
forma harmoniosa. O desumano através da história é um fato, assim
como o humano, e ambos estão indissociavelmente misturados até o
emergir da consciência moderna. Tal constatação, explicada pela
dialética e elevada à posição de verdade racional conclui
portanto que
o homem só poderia ter se desenvolvido através de contradições; portanto, o humano só poderia ter se formado em oposição ao desumano, inicialmente misturado com ele, para enfim ser discernido através de um conflito e dominá-lo pela resolução desse conflito. (LEFEBVRE, 2009, p. 39-40)
Marx nos traz, então, um
sentido preciso à confusa teoria da alienação, liberta das
interpretações místicas e metafísicas, ao separá-la de toda
hipótese fantasiosa sobre a queda do homem, o pecado, a decadência,
o mal, etc. (LEFEBVRE, 2009, p. 39-40)
A alienação do homem se
define, então, não religiosa, metafísica ou moralmente. Estes
aspectos, pelo contrário, apenas contribuem para alienar o homem,
arrancando-o de si mesmo, afastá-lo de sua natureza real e de seus
verdadeiros problemas. (LEFEBVRE, 2009)
Para o marxismo, a alienação
do homem contemporâneo, ou seja, na atual etapa do desenvolvimento
histórico, se manifesta no relacionamento do homem com seus
fetiches, o qual se manifesta como um desarraigamento de si e uma
perda de si mesmo. Este conflito só pode ser resolvido pela
destruição dos fetiches, por meio da supressão progressiva dos
fetichismo e da recuperação humana dos poderes que os fetiches
utilizavam contra o homem. O homem só se torna humano criando um
mundo humano, mundo este que é a proposta do comunismo. (LEFEBVRE,
2009)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se dizer que o pensamento
de Marx é, de certa forma, uma evolução e uma ruptura da filosofia
de Hegel. Em contato com os círculos hegelianos desde quando ainda
estudante de direito, a influência deste último pode-se fazer
sentir principalmente nas obras do jovem Marx. Ao tomar de empréstimo
o método dialético hegeliano e categorias como a de alienação, a
novidade trazida por Marx nestes campos consistiu em aplicar ao
domínio da vida material e das relações de produção o que antes
se encontrava circunscrito apenas ao pensamento ou à consciência.
As contradições que Hegel identificava na consciência Marx as
identificou como oriundas do mundo material, colocando, assim, Hegel
sobre seus próprios pés, pois que se encontrava “de cabeça para
baixo” (MARX, 1990).
BIBLIOGRAFIA
BECKENKAMP,
Joãosinho. Seis
Modernos.
Pelotas: EGUFPel, 2005.
ENGELS,
Friedrich. Ludwing
Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.
In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Textos. São Paulo: Edições
Sociais, 1975.
HEGEL,
Georg Wilhelm. Fenomenologia
do Espírito.
6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
LEFEBVRE,
Henri. Marxismo.
Porto Alegre: L&PM, 2009.
LENINE,
V. I. Karl
Marx.
In: Obras
Escolhidas.
São Paulo: Alfa e Ômega, 1986.
MARX,
Karl. Capital.
London: Penguin Books, 1990.
POULANTZAS,
Nicos. Marx e
Engels. In:
CHÂTELET, François. História
da Filosofia.
Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1981.
VÁZQUEZ,
Adolfo Sánchez. Filosofia
da práxis.
São Paulo: Expressão Popular, 2011.
Autor: Glauber Ataide