Hegel, Marx e o método dialético

Em uma carta datada de 16 de janeiro de 1858, Karl Marx escreve a Friedrich Engels que, enquanto trabalhava em seus escritos mais recentes, ele folheara por “puro acidente” um volume da Lógica de Hegel, e que isso lhe tinha sido de grande ajuda. Este volume, explica Marx, pertencia originalmente a Bakunin, e acabou indo parar em suas mãos através de um conhecido. Marx comenta então que tinha o desejo de, assim que tivesse algum tempo, escrever uma obra sobre o método tanto descoberto quanto mistificado por Hegel.

Marx, infelizmente, não viveu tempo suficiente para escrever tal obra, e a relação entre o seu método e o de Hegel, que não é das mais fáceis de se compreender, ficou por conta de comentadores. A importância de se estudar Hegel para uma abordagem mais profunda do pensamento de Marx já foi ressaltada várias vezes. Para Lênin, por exemplo, “não é possível compreender plenamente O Capital, de Marx, e particularmente o seu primeiro capítulo, sem ter estudado e compreendido toda a Lógica de Hegel”. Também em seu artigo Sobre o significado do materialismo militante, Lênin diz que para ser um partidário consciente daquele materialismo representado por Marx deve-se organizar um “estudo sistemático de Hegel do ponto de vista materialista”. As linhas que se seguem pretendem oferecer, neste sentido, uma breve introdução a alguns dos principais conceitos da dialética hegeliana.


A identidade dos contrários: “O ser e o nada são o mesmo”

Em sua Ciência da Lógica, Hegel pretende dar um novo começo à filosofia, sem pressupostos, de maneira semelhante à tradição inaugurada por Descartes. Para isso ele recorre ao que se pode identificar de mais fundamental, que é o ser (Sein). O puro ser é o início, pois é tanto puro pensamento quanto o imediato simples e indeterminado[1]. Este ser, no entanto, é apenas abstração pura, ou seja, considerado de forma imediata e indeterminada, é o nada (Nichts). Mas o nada é, pois, caso não fosse, não seria indeterminado. E o nada, como este imediato e indeterminado, igual a si mesmo, é também o mesmo que o puro ser. Por isso afirma Hegel: “o ser e o nada são o mesmo”. Ambos são logicamente inseparáveis, e cada um é o que é apenas em virtude do desaparecimento do outro, de modo que a verdade de ambos é o vir-a-ser (Werden).

Tentemos explicitar este movimento. Ser e nada são definidos por sua pura indeterminação, mas são categorias distintas ao mesmo tempo quanto ao seu significado. Obviamente queremos sempre dizer coisas diferentes quando usamos os termos “ser” e “nada”, mas esta diferença não pode realmente ser articulada, de modo que Hegel lança o desafio: “Que aqueles que insistem que ser e nada são diferentes, que ataquem o problema de dizer em que consiste a diferença. ” O conflito entre essas categorias, que são indistinguíveis, mas ao mesmo tempo opostas quanto ao significado, só pode ser resolvido ao se avançar para o vir-a-ser, uma categoria “superior”, mais complexa e que engloba tanto o ser quanto o nada.

A afirmação de que “o ser e o nada são o mesmo” parece tão paradoxal, “que talvez ela nem seja levada a sério”, diz Hegel. O filósofo de Jena afirma, contudo, deduzir sua unidade de forma puramente analítica, isso é, tudo é extraído do que já está contido no conceito, sem trazer elementos adicionais, externos. Se o ser é o puro começo, nada existe fora dele, e tudo deve estar contido apenas nele. Este movimento nos mostra, entre outras coisas, que a filosofia científica não avança por meio da postulação padronizada de “tese-antítese-síntese”. Este método, praticado pelo filósofo alemão J. G. Fichte, é falsamente atribuído a Hegel, mas na verdade não tem a ver com o desenvolvimento de seu sistema.

Este é apenas o início. Quando tanto o ser quanto o nada se desvanecem no vir-a-ser, de modo que este coincide através de sua contradição em si na unidade na qual ambos são suprassumidos (aufgehoben), seu resultado é o ser existente, ou o ser-aí (Dasein).

O filósofo húngaro Georg Lukács observa que, assim como neste início da Lógica já está contido todo o sistema de Hegel, poderia-se talvez dizer que Marx tenha feito o mesmo em O capital, de forma que seu primeiro capítulo, ao analisar a mercadoria, também já contém em si todo o restante.


A Aufhebung, ou a suprassunção dialética

O vir-a-ser incorpora o desvanecer do ser no nada como aspecto “suspenso” (cancelado mas ao mesmo tempo preservado) de seu movimento. Este processo, chamado no alemão de Aufhebung, é um dos conceitos mais importantes da dialética.

O substantivo Aufhebung se origina do verbo alemão aufheben, sendo de uso muito comum neste idioma. Este verbo tem pelo menos três significados distintos que nos interessam: 1) negar (no sentido de anular ou cancelar, como quando suspendemos ou cancelamos um passeio por causa do mau tempo), 2) preservar e também 3) elevar a um nível superior. Hegel foi inovador ao utilizar o termo Aufhebung para significar não apenas um destes sentidos de cada vez, mas os três ao mesmo tempo. Devido a esta particularidade da língua alemã, a Aufhebung é sempre um problema de tradução. No Brasil, o cearense Paulo Meneses (1924-2012), principal tradutor de Hegel, optou pelo termo suprassunção. Sem que se conheça, no entanto, esta particularidade da língua alemã e também da obra de Hegel, não se pode inferir, a partir da tradução apenas, que este termo englobe ao mesmo tempo os três significados.

Como vimos mais acima, o ser e o nada são suprassumidos (aufgehoben, passado de aufheben) no vir-a-ser. Isso é, os momentos do ser e do nada são tanto cancelados quanto preservados como aspectos do vir-a-ser, e estes momentos “suspensos” do vir-a-ser são, por sua vez, transformados em momentos de algo dentro da unidade mais complexa do ser determinado, o Dasein. Nas palavras de Karl Marx, no suprassumir “a negação e a conservação, a afirmação (Bejahung), estão ligadas”.[2]

Vejamos um exemplo mais concreto da Aufhebung: o trabalho, ou a transformação da natureza pelo homem. Para fazer um pão é necessário trigo, o qual se encontra em sua forma bruta na natureza. Mas para que ele chegue à forma de pão, essa matéria-prima deve ser negada, isso é, destruída em sua forma natural. No entanto, ao ser transformado em pasta, o trigo é preservado, ou seja, ainda está lá enquanto trigo. Através da atividade humana ele é então levado ao forno e elevado a um nível superior, sendo o seu resultado o pão. Assim, neste processo vemos os três momentos: o trigo é negado (em seu estado de natureza), preservado e elevado a um nível superior. O trabalho humano é essencialmente dialético.

Marx utiliza o conceito de Aufhebung em diversas passagens de sua obra. Se não estamos conscientes, todavia, da herança hegeliana presente em seu pensamento, também não o compreendemos em toda sua riqueza. No Manifesto do Partido Comunista, por exemplo, Marx e Engels afirmam: “Os comunistas podem resumir sua teoria numa expressão: supressão da propriedade privada.” No original alemão, o trecho “supressão da propriedade privada” é “Aufhebung des Privateigentums”. A passagem do capitalismo para o comunismo pode ser compreendida como uma Aufhebung: a velha formação social é negada, preservada e superada. Pois uma revolução comunista, enquanto nega a propriedade burguesa, não destrói o mundo para reconstruí-lo do nada; não nega, por exemplo, todo o progresso científico e tecnológico que o capitalismo representa em relação ao feudalismo, sem o qual o próprio comunismo não seria uma possibilidade; e nem acaba com todo tipo de propriedade em geral, mas torna social a propriedade dos meios de produção. Há, de fato, propriedade no comunismo, mas não a propriedade burguesa. Marx afirma, em seus Manuscritos econômico-filosóficos, que o comunismo é a suprassunção (Aufhebung) da propriedade privada [burguesa], a “negação da negação, e por isso o momento efetivo necessário da emancipação e da recuperação humanas para o próximo desenvolvimento histórico”.


A efetivação da filosofia

Lênin afirmou aos colaboradores e leitores da recém-fundada revista científica Pod Známeniem Marksizma, no já mencionado artigo Sobre o significado do materialismo militante, que sem uma sólida fundamentação filosófica não há ciência da natureza e nem materialismo que possa suportar a luta contra as investidas das ideias burguesas. E “para atingir este fim”, afirma o líder bolchevique, é necessário “organizar o estudo sistemático da dialética de Hegel do ponto de vista materialista, isto é, da dialética que Marx aplicou tanto no seu O capital como nos seus trabalhos históricos e políticos”. Consciente da dificuldade inicial de se estudar Hegel, ele pondera: “o trabalho necessário para esse estudo, para essa interpretação e essa propaganda da dialética de Hegel, é extremamente difícil, e sem dúvida as primeiras tentativas nesse sentido serão acompanhadas de erros. Mas só quem não faz nada não se engana”. Ele sugere, então, que a revista publique “fragmentos das principais obras de Hegel”, interpretando-as de modo materialista e comentando-as com a ajuda de exemplos da aplicação da dialética por Marx. O grupo de redatores da revista deve ser, na opinião de Lênin, uma espécie de “sociedade de amigos materialistas da dialética hegeliana”.[3]

Marx expressou mais de uma vez em suas cartas que pretendia escrever um livro sobre dialética, o que, infelizmente, nunca aconteceu. Era seu objetivo tornar o método descoberto por Hegel “acessível ao senso comum”. A complexidade[4] dos textos de Hegel esconde um núcleo “racional”, e o trabalho de compreendê-lo é não apenas recompensador, mas também necessário. As obras de Marx, se estudadas de forma isolada, unilateral, ressaltam mais as diferenças deste com Hegel do que as aproximações. Mas compreender o marxismo significa compreender o seu método, o qual se torna, no entanto, praticamente inexplicável quando se perde a referência a Hegel. Este foi, inclusive, um dos graves erros teóricos da Segunda Internacional.

O idealismo alemão, um dos períodos mais ricos, influentes e complexos da história da filosofia teve, como um de seus principais temas, o conceito de liberdade. Ele foi a manifestação filosófica da exigência moderna por racionalidade e liberdade. Para Hegel, por exemplo, toda a história humana era a progressiva efetivação da ideia de liberdade no mundo, e ele a via como a reconciliação dos seres racionais com o mundo natural e uns com os outros. Marx, herdeiro desta tradição, é um filósofo da emancipação humana, e coube à sua originalidade perceber que esta liberdade não seria alcançada apenas pelo pensamento, mas também pela práxis de um sujeito revolucionário concreto: o proletariado. Por isso, ainda fortemente influenciado por Hegel, ele escreve na introdução de sua Crítica à filosofia do direito de Hegel: “...assim como a filosofia encontra suas armas materiais no proletariado, o proletariado encontra suas armas espirituais na filosofia. [...] Mas a filosofia não pode se realizar sem a extinção (Aufhebung) do proletariado, nem o proletariado pode se abolir (aufheben) sem a efetivação da filosofia.” Para o jovem Marx, o comunismo é a efetivação da filosofia através da práxis do proletariado.

Glauber Ataide


1) Uma determinação é uma qualidade; algo indeterminado é algo que não possui qualidades ou propriedades. (LÊNIN, V.I. Cadernos sobre a dialética de Hegel. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, p. 109)
2) MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. p. 130
3) Este artigo de Lênin, de 1922, é mais uma evidência de sua progressiva aproximação das obras de Hegel. Esta tendência só foi interrompida por sua enfermidade e morte prematura em 1924.
4) Sobre uma suposta obscuridade dos textos de Hegel, Paulo Meneses, seu principal tradutor no Brasil, discorda: “não considero a escrita de Hegel como hermética nem cheia de jargões. Não há grande filósofo fácil (quem busca facilidades pode recorrer a Paulo Coelho), nem Hegel cultiva jargões, mas emprega as palavras correntes de seu idioma, que em geral explica quando lhes dá um sentido específico, como faz, por exemplo, com aufheben. ”