"Luta armada foi correta"

Último comandante militar da ALN defende execução de Hennig Boilesen, exorciza pecados dos dominicanos, não se arrepende de justiçamento de Marcio Leite Toledo, conta que Goiás fazia parte do mapa da guerrilha e avalia que existia possibilidade de derrota dos militares

Nome: Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz, de 60 anos. Codinome: Clemente. Último comandante militar da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização guerrilheira de tendência comunista que empreendeu luta contra a ditadura militar no Brasil, ele afirma que Goiás fazia parte do mapa da revolução brasileira nos anos 60 e 70. A estratégia era deflagrar a guerrilha rural. Com inspiração em Régis Debray, o francês capturado nas selvas da Bolívia ao lado de Che Guevara, em 1967. Clemente retira o peso das costas dos dominicanos pela queda de Carlos Marighella, morto em 4 de novembro de 1969, em São Paulo (SP). Companheiro de armas, o ex-guerrilheiro relata os últimos momentos do goiano Paulo de Tarso Celestino, supostamente morto na Casa de Petrópolis. Mais: explica que não se arrepende do justiçamento de Marcio Leite Toledo, defende a execução de Henning Boilesen e confidencia que mais nomes ligados à repressão integravam a lista de executáveis da organização. Para Clemente, a possibilidade de derrota armada dos militares que deram o golpe de Estado de 1964 no Brasil não era um delírio à esquerda dos jovens da esquerda revolucionária: "a luta armada foi correta e havia possibilidade de vitória".

100 anos do nascimento de Carlos Marighella: ele foi herói ou vilão?

Herói do povo brasileiro. Como por aqui demoramos a reconhecer nossos heróis, Marighella ainda não aparece nos livros de História do Brasil com essa estatura. Zumbi demorou quantos séculos para ser reconhecido? Até quando pensamos, porque fomos ensinados, que a independência do Brasil tinha sido alcançada pelas mãos de Pedro I e não conquistada pelas lutas de nosso povo? Esta é uma de nossas lutas hoje, atualizar nosso ensino. Precisamos ensinar às nossas crianças que houve um golpe de Estado em 1964 e os generais foram ditadores. Quem, como Carlos Marighella, reagiu de armas na mão, lutou pela democracia. Foram resistentes da liberdade.

A queda de Carlos Marighella pode ser debitada única e exclusivamente na conta dos dominicanos, como aponta Jacob Gorender?

As quedas de Marighella e de grande parte do GTA (Grupo Tático Armado) de São Paulo começaram quando nos desviamos de nossa linha inicial, que era de preparar e lançar a guerrilha rural, criando condições para uma luta de longo prazo, e passamos a acreditar que teríamos como desestabilizar o regime com ações armadas de grande repercussão nas cidades. Demos um papel à propaganda armada imediata que ela não tinha antes. Pensamos que estávamos mais fortes do que era verdade, e a ditadura também. A repressão veio com toda violência, milhões foram gastos para nos destruir, arrancaram informações de nossa estrutura através da tortura, e chegaram a Marighella. Isso não tira a responsabilidade histórica dos dois dominicanos que abriram (entregaram) o ponto (encontro) com nosso líder e chegaram a dar a senha por telefone. O Estado ditatorial cometeu o crime de torturar dois brasileiros e forçá-los a trair a confiança de Carlos Marighella e de seus companheiros de armas.

Quem matou Joaquim Câmara Ferreira?

José da Silva Tavares, militante da ALN, entregou o Velho (Joaquim Câmara Ferreira) ao delegado Sérgio Paranhos Fleury. O famigerado e sua equipe prenderam nosso líder, torturaram e assassinaram na madrugada de 23 para 24 de outubro de 1970.

A adoção da estratégia de luta armada não teria sido equivocada?

Não. Em primeiro lugar havia uma necessidade de responder a violência da direita que rasgou a Constituição de 1946 e deu o golpe de Estado. Uma nação soberana e justa se constrói também através das lutas de seu povo. Quando uma parte da sociedade apela para a violência, é bom que aqueles que defendem a democracia e a liberdade respondam com as mesmas armas. Isso vai construindo uma consciência a longo prazo, mesmo se essa luta não conseguir todos os seus objetivos.

Existia a possibilidade de vitória da guerrilha contra a ditadura civil e militar?

Havia, e por isso a reação da direita e do imperialismo norte-americano foi tão violenta e investiram tanto dinheiro no aparelhamento e treinamento de suas forças repressivas.

Onde estariam enterrados os restos mortais de Paulo de Tarso Celestino e Heleni Guariba?

Paulo e Heleni foram traídos pelo Cabo Anselmo e não temos nenhuma informação sobre seus restos mortais, como não sabemos os detalhes de seu desaparecimento. São as informações que queremos quando defendemos a Comissão Nacional da Verdade. O país precisa saber o que aconteceu com os companheiros desaparecidos e suas famílias precisam dos restos mortais para homenagear seus entes queridos. Paulo de Tarso foi um dos companheiros mais próximos. Conheci-o quando voltou de Cuba e nossa ligação foi imediata. Compartilhamos nossas experiências e participamos da Coordenação Nacional montada por Joaquim Câmara Ferreira em 1970. Estivemos juntos na véspera de sua queda. Foi uma das perdas irrecuperáveis da ALN.

Não teria sido um erro o justiçamento de Marcio Leite Toledo?

Uma guerra pressupõe medidas duras e às vezes irreversíveis. A organização vinha sendo atingida duramente e tomamos medidas de defesa. Preferia que não tivéssemos precisado chegar a esse ponto, mas tenho certeza que os danos seriam maiores se houvéssemos hesitado. No nível pessoal, foi uma ação que deixou marcas profundas que não devem ser confundidas com arrependimento. São marcas de guerra que os combatentes carregam pelo resto de suas vidas.

A execução de Henning Boilesen foi uma ação correta?

O justiçamento de Boilesen foi justo, correto e necessário.

A ALN tinha planos de executar mais alguém?

Sim. Alguns estavam no mesmo esquema de Boilesen, o financiamento do sistema repressivo.

Qual proposta concreta lhe fez o cubano Arnaldo Ochoa?

Voltar ao Brasil partindo de Cuba com 100 combatentes cubanos comandados por mim e por ele. Entraríamos em território nacional pelo Rio Amazonas e nos instalaríamos no Centro-Norte do país. Recusei por várias razões: era o ano de 1973 e a ALN já estava quase dizimada; havíamos perdido a maioria dos contatos no campo; restavam poucos combatentes experientes. Porém a mais importante das razões era sermos uma organização de libertação nacional. Isso era um princípio e não negociamos princípios.

Existia alguma possibilidade de viabilidade dessa proposta?

Dela se concretizar, sim. Estivemos, eu e Ochoa, várias vezes no comando do Exército de Havana e ele me mostrou todo o esquema. Desde a organização até o desembarque em terra brasileira.

Goiás fazia parte do mapa da revolução da ALN? Por quê?

A guerrilha rural seria lançada em algum lugar entre o noroeste de Goiás, do Pará, do Maranhão e uma parte do Amazonas. Eram áreas boas para a guerra de guerrilha do ponto de vista geográfico, vegetação, e também devido aos conflitos agrários que nos fortaleceriam e forjariam quadros.

O sr. tem projeto de novo livro? Qual tema?

Tenho meu terceiro livro na gaveta e vou lançá-lo no ano que vem. Conta meu exílio em Paris, minha volta ao Brasil, e ainda histórias da luta armada.

Há projeto de lançamento de CD?

Tenho o projeto de juntar meus alunos de música e gravar um CD com composições minhas. Depois de lançar o livro e terminar dois projetos de cinema, me ocupo disso.

Documentário ou filme?

A Isa Albuquerque, realizadora do Rio de Janeiro, está filmando o documentário "Codinome Clemente" e um longa de ficção com histórias do "Viagem à Luta Armada" e de meu terceiro livro.

O que o sr. está lendo?

"La Supplication — Tchernobyl, Cronique du Monde Après l'Apocalypse" (1997), da bielorrussa Svetlana Alexievitch, que conta o que se passou depois da explosão da usina atômica soviética. Esse livro ainda é proibido na Bielorrussia, pois não esconde o terror daqueles momentos.

Fundação Lauro Campos - [Renato Dias]
Publicado originalmente no Jornal Opção


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